Por Carlos Marchi
Chamava-se Academia de Bailes. Uma edificação em dois volumes, uns 150 metros quadrados, a papayera, orquestra de 12 a 24 músicos tocava ininterruptamente na Aracataca dos anos 20, epicentro da febre bananeira, onde se concentravam os bons partidos da Colômbia. As moças, esmeradas no vestido, nas jóias, na maquiagem e no penteado, sentavam-se em cadeiras alinhadas junto às paredes. Tomando uísque, os bons partidos fluíam de um lado para outro, mirando as señoritas.
De repente, o convite. Trêmula, a moça jogava no giro da roleta: daquela dança podia sair um casamento de ocasião ou a inevitável condenação à solteirice eterna ou à prostituição amaldiçoada – nenhum homem se casaria com mulher que já tivesse dançado com outro. A mesma construção centenária que abrigava a Academia de Bailes é hoje ponto de exercício do ócio; no lugar onde evoluíam os pares, jovens sem perspectiva jogam em oito mesas de sinuca, sintetizando a diferençaentre a Aracataca fantástica do início do século 20, prenhe de fantasias, da Aracataca desesperançada do século 21.
Esta é uma história de Aracataca nunca contada por Gabriel García Márquez. Como ela, existem muitas outras, plenas de personagens mágicos e pontuadas por tragédias agudas. Como disse Carlos Fuentes,com indissimulada ponta de inveja, as histórias de Aracataca se apresentaram prontas - "Aqui estoy. Así soy. Ahora, escribeme." Gabo aceitou a oferta generosa e espontânea, acolheu uma parte delas paraencorpar o realismo mágico e pavimentar a sua trajetória para o Prêmio Nobel. Nem todas as histórias - tantas eram - couberam em seus livros e ainda hoje permanecem virgens na cidade.
A INSPIRAÇÃO DE MACONDO
A 80 quilômetros de Santa Marta, capital do departamento de Magdalena, Aracataca tem hoje 52 mil habitantes, quatro vezes mais que os 12 mil habitantes de 1927, ano em que Gabo nasceu. À época, os trabalhadores sofriam os achaques da companhia bananeira; hoje, simplesmente não háempregos. Graças às patrulhas permanentes do Exército, a guerrilha das Farc já não seqüestra pessoas na estrada que vai de Santa Marta a Bosconia, que passa pela entrada da cidade. Mas os acampamentos guerrilheiros estão bem ali ao lado, nos altos da Serra Nevada, e novizinho departamento do Cesar.
A inspiração de Macondo, no entanto, segue viva. A velha botica, na esquina da Avenida Monseñor Espejo com a Rua dos Turcos, a um quarteirão e meio da casa da família Márquez Iguarán (palco, em 1950, do momento em que Gabo decidiu contar as histórias da infância), está de pé, hoje desempenhando o simplório papel de armazém. Rústica, de madeira e zinco, a velha construção tem um estranho telhado alto e inclinado, não para escorrer uma neve que nunca cairá ali, mas para"quebrar" o vento nas tormentas devastadoras de Aracataca.
Dentre todos os velhos mistérios de Macondo, a Rua dos Turcos perdeu o encanto. O seu comércio, florescente nas primeiras décadas do século 20 e palco de mistérios de Cem Anos de Solidão, hoje se resume a bares que só vendem cerveja e pobres tiendas para comercializar chamadas a partir de celulares, a 150 pesos (R$ 0,15) o minuto, revelando a indigência econômica da cidade. A única livraria faliu, constata Rafael Dario Jimenez, diretor da casa-museu Gabriel García Márquez.
O Rio Aracataca mantém suas "águas diáfanas" (menos na estação das chuvas, a partir de maio, quando elas descem amarronzadas da serra Nevada), com suas inconfundíveis pedras redondas e brancas, tal qual um inesgotável ninho de ovos pré-históricos, como o rio de Macondo. Os ciganos têm vindo pouco; quando vêm para negociar cavalos, são mal recebidos pelos cataqueros, que os têm na conta de ladrões. Os circos sumiram; vez por outra chegam parquinhos mambembes. Mas a gallera(rinha de galos) mantém a tradição que vem do início do século 20, quando Gabo nasceu.