O mínimo que se espera de um escritor é que seja um rigoroso guardião da liberdade de expressão. Mas Gabriel García Márquez sempre colocou sua amizade com Fidel Castro acima disso. Seus amigos se desdobram em explicações para o seu compadrio com Fidel. Admitem que Gabo tem fascinação pelo poder, mas essa admiração se bifurca, ora atende a critérios político-ideológicos, ora obedece ao mando dos afetos pessoais. Fidel, dizem, está nessa segunda conta. A reportagem é de Carlos Marchi e publicada no jornal O Estado de S. Paulo, 3-06-2007.
Também se espera de um escritor que tenha sensibilidade humanista. É esse manto que abriga hoje um Gabo bem menos à esquerda do que em tempos passados. Amigo de Fidel, sim, mas sem esquecer a demissão atribulada da agência noticiosa cubana Prensa Latina em 1961, porque seus textos desagradavam a Havana. Demitido, nunca receberia a indenização. Sem dinheiro, foi de Nova York à Cidade do México de ônibus. O único lenitivo foi conhecer, da janela do ônibus, o sul dos EUA, cenário das novelas de William Faulkner, sua influência. Se não doeu na alma, ele confessa aos amigos que doeu no corpo chegar à Cidade do México com mulher, dois filhos pequenos e apenas US$ 200 no bolso. Doeria na alma, após a fama, descobrir que os textos que redigira para a Prensa Latina tinham sido expurgados do arquivo da agência, em Havana. Mesmo assim, a amizade com Fidel frutificou.
O jornalista Flávio Tavares encontrou-o com os filhos, em 1963, na sala de espera do pediatra Amador Pereira, um espanhol que atendia os filhos dos esquerdistas na Cidade do México. Na ocasião, Gabo contou-lhe que tinha sido demitido da Prensa Latina em Nova York porque os cubanos achavam que ele escrevia textos notoriamente “burgueses”. “Parecia magoado”, rememora Flávio.
Gabo já singrou muitos espectros ideológicos. A formação original é conservadora. “Cem Anos de Solidão é uma saga de autoritários e conservadores”, observa Gustavo Tatis, editor cultural de El Universal, o principal jornal de Cartagena. Depois caminhou para a esquerda; perdeu ímpeto após sair da Prensa Latina; depois derivou novamente para a esquerda. Em 1981 foi acusado de envolver-se com a guerrilha do M-19 na Colômbia e expulso do país.
A seu antigo editor brasileiro, Alfredo Machado, confessou certa vez que era um “comunista aristocrático”, conta o filho Sérgio Machado. Adora os valores da vida burguesa: boa comida, charutos e uísque puro malte. Hoje, na Colômbia, não fala de política: nunca elogiou a guerrilha e, em 1998, apoiou em público o candidato Andrès Pastrana, do Partido Conservador.
O político por quem teve maior afeto foi o ex-presidente do Panamá, Omar Torrijos, cujo marco ideológico era o antiamericanismo. Quando Torrijos morreu num acidente aéreo suspeito, disse a amigos que não foi ao enterro porque não agüentava “enterrar os amigos”. A partir daí, aproximou-se de Fidel, com quem fala muito sobre livros, comida e conspirações.
FIDEL, SÍ; CHÁVEZ, NO
Um amigo atalha: se a proximidade com Fidel tivesse razões ideológicas, ele seria também um admirador de Hugo Chávez. No entanto, Gabo nunca nutriu a menor admiração pelo venezuelano ou seus parceiros da aventura bolivariana.
Até os anos 90, “cumpriu tarefas” para Fidel: deu “recados” para o mundo, serviu de intermediário de mensagens a Bill Clinton, de quem é amigo pessoal.
Também tem forte ligação afetiva com o ex-primeiro-ministro espanhol Felipe González, um socialista moderado. Guarda uma amizade de 60 anos com o escritor colombiano Álvaro Mutis, que como ele mora na Cidade do México e que, mais que conservador, é monarquista. “Nós nos queremos muito. Nunca tivemos uma mínima rusga. Juntos, passamos momentos duros e alegres”, disse, com imensa doçura, Mutis.
Também tem forte ligação afetiva com o ex-primeiro-ministro espanhol Felipe González, um socialista moderado. Guarda uma amizade de 60 anos com o escritor colombiano Álvaro Mutis, que como ele mora na Cidade do México e que, mais que conservador, é monarquista. “Nós nos queremos muito. Nunca tivemos uma mínima rusga. Juntos, passamos momentos duros e alegres”, disse, com imensa doçura, Mutis.
Mas as “tarefas” que os amigos mais exaltam são as intervenções humanitárias. Em 1980, quando Fidel liberou as saídas de cubanos para os EUA em Puerto Mariel, Gabo internou-se no Hotel Riviera, em Havana, para negociar a liberação de intelectuais presos entre os 125 mil cubanos que optaram por Miami. Também mediou secretamente a libertação de alguns seqüestrados pela guerrilha colombiana. Amigos garantem que no período duro da revolução cubana - o ‘qüinqüênio gris’ -, nos anos 70, ele operou para amenizar a censura.
Recebeu como tarefa o pedido do escritor chileno António Skármeta para escrever o livro-documentário A Aventura de Miguel Littín Clandestino no Chile. Produziu, com Littín, que à época passava por grandes dificuldades financeiras no exílio, uma peça instigante. Mas, para desespero do chileno, doou os direitos autorais integrais à escola de cinema de San Antonio de los Baños, que tinha criado em Cuba. E não era pouco: US$ 750 mil.
Em março de 1974, escreveu um livro sobre os últimos dias do ex-presidente Salvador Allende - Chile, el Golpe y los Gringos - com o jornalista brasileiro Eric Nepomuceno e prometeu não escrever mais novelas enquanto Augusto Pinochet mandasse no Chile. Os direitos foram doados a grupos que defendiam a redemocratização chilena.
Odeia ‘gringos’, mas não se incomodou quando o ex-presidente Bill Clinton o encontrou, na homenagem que o rei da Espanha lhe prestou há três meses, em Cartagena, e lhe espetou na lapela um button da campanha de sua mulher Hillary à Presidência dos EUA. Poucos perceberam, mas a foto de Gabo com aquele button na lapela foi multiplicada na imprensa latina dos EUA. Não há dúvida: Gabo é um formidável formador de opinião em comunidades latinas de qualquer latitude.
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