quarta-feira, 13 de junho de 2007

Afetos duradouros, mesmo com soco de Vargas Llosa...

Apesar do desentendimento com colega peruano, ele dá valor mítico à amizade




Gabriel García Márquez é um homem de afetos duradouros. Embora suabiografia seja pontuada por citações de libertinagens na juventude,ele se tornou um homem rigorosamente fiel - embora siga sendo umgalanteador incorrigível até hoje - desde que se casou com MercedesBarcha, em 1958, aos 31 anos, ao contrário do pai, Elígio, que namorouaté morrer.

A única desconfiança a pesar-lhe foi o soco demolidor que Mário VargasLlosa lhe aplicou em fevereiro de 1976, num cinema mexicano, quandoGabo o recebia de braços abertos para estreitá-lo num abraço. Eleseram muito amigos até que Vargas Llosa ficou transtornado com a"assistência psicológica" que Gabo, numa crise do casamento, teriadado a Patrícia, então mulher de Vargas.

Depois do soco, nunca mais. Numa exposição em Barcelona, Mercedespuxou Gabo para a saída ao ver Vargas entrar. Agora, Vargas autorizoua publicação de um resumo de seu magistral ensaio História de umDeicídio, considerado a melhor interpretação de Cem Anos de Solidão,na nova edição do livro feita pela Real Academia Espanhola da Língua.Os amigos interpretaram a autorização como um aceno para a retomada da antiga amizade.

Do outro lado, uma de suas maiores admirações, o escritor mexicanoJuan Rulfo, igualmente tímido, afastou-se quando Gabo ganhou o Nobel.Gabo ficou procurando uma forma de se reaproximar suavemente. Um diaRulfo estava na casa de Eric Nepomuceno, na Cidade do México, quandose deu a cena: sem ter sido convidado, Gabo desembarcou do carrodirigido por Mercedes, levando nas mãos uma enorme panela de massa quetinha comprado num restaurante italiano. Juntos, eles comeram, riram efalaram mal de meio mundo.

Rulfo mereceria dele uma singela homenagem. Depois de receber o Nobel,Gabo decidiu recusar toda e qualquer honraria, mas foi receber aAguila Azteca, a mais alta condecoração mexicana, concedida antes dogrande laurel literário. Quando, num rito protocolar, o presidenteJosé López Portillo lhe perguntou se aceitava a condecoração, Gabodisse que não, a não ser que seu amigo Juan Rulfo estivesse a seulado. Quebrado o protocolo, Rulfo se levantou na platéia e foisentar-se ao lado de Gabo e do presidente.

Ele é assim - dá um valor quase mítico à amizade. "Ele entende aamizade com o sentido estrito de uma máfia, em que todos atuam juntos,um protege o outro", explica o cineasta Ruy Guerra. Por isso, sócontinuaram sendo amigos dele os que entenderam esse conceito, comoÁlvaro Mutis, Carlos Fuentes e Juan Rulfo, enquanto viveu. VargasLlosa não teria entendido - e por isso todos os que conhecem Gaboasseveram: como era antes, nunca mais.

Com o pai, don Gabriel Eligio, sempre foi cerimonioso. Numa conversacom ele e sua mãe, em Cartagena, a conversa fluía mineiríssima. Derepente, Gabo contou que estava escrevendo um livro com um personagem"parecido" com o pai. E tascou-lhe a pergunta, na lata: "Você aindatransa com a minha mãe?" Don Gabriel, aos 87 anos, garantiu-lhe: "Nãoimaginas como e quanto." Gabo saiu felicíssimo, eufórico, tendo à mãoum certificado de verossimilhança para o desempenho sexual queemprestou ao personagem de O Amor nos Tempos do Cólera.

Todos concordam que ele tem um ego monumental e que parece arrogante,porque sempre impera sobre as conversas. Ruy Guerra relata que uma vezeles contaram e concluíram que Gabo tinha 11 casas ao redor do mundo. Hoje, são 7: na Cidade do México, em Cuernavaca, em Havana, emCartagena, em Bogotá, em Paris e em Barcelona. Considera-se moderno:usa computador desde 1989, quando aposentou a companheira das velhaslides - uma Smith Corona mecânica.

Há oito anos ele soube que seu dentista em Cartagena, Jayme Gazabón,ia batizar o filho e foi o primeiro a chegar à igreja de Santa Cruz deManga, em Cartagena, mesmo sem ter sido convidado. Disse ao padre queseriam padrinhos, ele e Mercedes. Foi a maior surpresa da vida deGazabón e sua mulher Angela. "Nem conversei. Pedi desculpas aospadrinhos convidados e dei meu filho para Gabito batizar", contou ele.

Seguro do ato, Gabo levou até presente para o afilhado - três CDs comcem vallenatos, com dedicatória e tudo. Depois, foi à comemoração, nosalão de festas do edifício onde moram os Gazabón e comandou a festa.Gazabón diz que empacou quando Gabo quis saber qual seria o peso deuma enorme ponga (uma espécie de baobá colombiano) plantada no jardim.

O Nobel deu-lhe fama mundial, mas nada tocou mais seu coração, garanteGustavo Tatis, do que receber o bastão-símbolo de palavrero (o líderque resolve tudo com palavras) da etnia wayúu (guaiú), do departamentode La Guajira, onde nasceu seu avô Nicolás (o coronel da Guerra dosMil Dias, que fugiu de Riohacha para Aracataca após matar MedardoPacheco, tal como José Arcadio Buendía, que fundou Macondo depois dematar Prudencio Aguilar Riohacha). A mãe Luisa Santiaga nasceu emBarrancas, um lugar típico dos guaiú.

Numa cerimônia em La Guajira, em março de 2003, o antropólogo WeildlerGuerra Curvelo, um mestiço guaiú, entregou-lhe o bastão-símbolo efez-lhe uma homenagem em idioma guaiú. Quem presenciou disse que omestiço guaiú Gabo ficou circunspecto e emocionado. É bem possívelque, para ele, aquela honraria tocasse mais que o Nobel, por revolveras mais convincentes reminiscências das profundezas de onde brotaria Macondo.

Estado de São Paulo, 12 de junho de 2007

Um comentário:

Ricardo Mendonça Cardoso disse...

Olá! Vi o blog de vocês e achei muito bom. Sou fã de Gabriel Garcia Marquez e não há um site oficial do escritor e os sites que possuem informações sobre ele apenas mostram biografia e os títulos publicados. É uma pena que este blog nõa tenha sido atualizado desde 2007, pois é um belo projeto e hoje teria muito sucesso. Por que vocês não voltam a postar novidades sobre El Gabo nele? Abraços!